30.8.07

Up to the mountain: ahead!

"Quando morrem, os ferroviários vão para o céu a bordo de um comboio com asas. Tal e qual. Com passagem pela Rua das Dificuldades e pela Rua dos Arrependidos, que são como o purgatório daqueles que passaram a vida a lidar com carris. Depois, da estação do Pombal para cima, é sempre a subir. Up to the mountain: ahead!

Já ninguém se lembra muito bem de qual foi o inglês que bradou aquilo pela primeira vez. Up to the mountain: ahead! A locomotiva Florisdorf resfolegando vapor pela longa chaminé, o Mount Railway do Funchal abandonando o cais devagarinho em direcção ao topo da montanha, os ingleses muito compostos, sentados com as costas direitas, todos fleuma e elegância, que a um inglês cabe ser o mais civilizado de todos os seres em toda a parte, mas sobretudo fora de casa, para que os selvagens vejam bem visto de que têmpera e classe são feitos os súbditos de Sua Majestade. Lá iam a caminho do Terreiro da Luta, emproados como galgos, muito sérios, capazes mesmo de disfarçar a emoção que tudo aquilo provocava, os silvos da caldeira, as faúlhas do carvão, a nuvem de fumo derramando-se da chaminé. Até que um qualquer, que talvez tivesse passado pelas tascas da poncha antes de embarcar, e que teria, por isso, as faces mais coradas do que os demais, se ergueu do banco, meio ébrio, e, apontando o topo do monte, gritou aquele Up to the mountain: ahead! que os ferroviários ainda gritam quando vão a caminho do céu.

Up to the mountain: ahead!, pois. Tal e qual. A mesma frase que os “chapas” passaram a gritar quando o comboio do monte se punha em movimento – para impressionar os ingleses que vinham curar tuberculoses. O grande escudo metálico rebrilhando-lhes no peito e eles, imitando a bazófia dos bifes, empurravam o peito para fora e gritavam Up to the mountain: ahead! a plenos pulmões, como se anunciassem o início da viagem ao centro da terra, a partida para a descida das vinte mil léguas submarinas, o embarque com Sindbad, o marinheiro. Up to the mountain: ahead!

Parece-me, às vezes, que aindo os oiço e nem sequer estranho. Gosto de imaginar que sobre a Estrada dos Marmeleiros assentam ainda invisíveis, os carris e as cremalheiras do comboio de outrora, resfolgando, a locomotiva empurrando a carruagem dos passageiros na subida, os cinquenta lugares ocupados por velhos ferroviários defuntos, e, porém, felizes, que vão em algazarra por ali acima, tilintando cálices, atirando bonés ao ar e gritando em coro a frase antiga – Up to the mountain: ahead! – enquanto apontam para o topo do monte e riem como se fossem meninos que tivessem descoberto a ausência da gravidade; que lançam pétalas coloridas à passagem pelo Flamengo e que mergulham as mãos enrugadas na Levada de Santa Luzia. Up to the mountain: ahead! Todos cantando em coro como deuses pagãos, dando-se palmadas nas costas e batendo os pés no chão a compasso.

Up to the mountain: ahead!

Às vezes creio que Fernando Pessoa vai e vem com eles, ainda menino de sete anos ao colo da mãe, circunspecto e duro como um bom inglês das colónias, olhando para a paisagem e adicionando ao cântico dos ferroviários a toada daquele comboio descendente onde vai tudo à gargalhada. “Uns por verem rir os outros, outros sem ser por nada”. No comboio descendente, da Confiteira à velha Levada.

Up to the mountain: ahead!

Quando morrem, os ferroviários vão para o céu a bordo de um comboio com asas que guarda o espírito de todos os comboios que já não fazem pouca-terra. E dão boleia aos poetas que falecem adultos sendo ainda pequenos. Um que eu conheço disse-me até, um dia, que o mundo começa e acaba numa gare ferroviária: embarca-se e a vida passa pela janela em contramão.
All aboard?"

MARMELO, Manuel Jorge - O profundo silêncio das manhãs de Domingo. Lisboa : 2007, Edições Quasi, pp. 124-127 .

Manuel Jorge Marmelo nasceu no Porto em 1791 e é jornalista desde 1989. Estreou-se na Literatura em 1996 com o livro “O homem que julgou morrer de amor/O casal virtual”. Já publicou mais de uma dezena de livros. Em 2005 ganhou o Grande Prémio de conto Camilo Castelo Branco e o seu nome consta, desde Julho de 2001, do “Dicionário de Personalidades Portuenses do Século XX”, da Porto Editora, o que o torna o mais jovem dos nomes biografados.

Página pessoal: http://planeta.ip.pt/~ip202503/marmelo.html

1 comentário:

Anónimo disse...

Foi com muita alegria a surpresa que descobri este texto num livro passado quase todo na cidade do Porto.